Memórias

Um Paradigma da acção

Chegar aos Montes Altos é entrar na ruptura do quotidiano, do lógico, do possível. Montes Altos é o lugar que não espera o fim mas espera o futuro; é onde a linearidade perdeu o sentido para dar sentido a um novo projecto de construção da vida: da projecção demográfica (conhecida como destino) elegem o desafio, do isolamento retiram a tranquilidade, da disfuncionalidade conquistam a esperança, do envelhecimento constroem a memória.

E é nessa encruzilhada do destino onde tudo se joga – o velho e o novo, o ortodoxo e o inovador, a tradição e a modernidade, o individual e o colectivo – que a memória se torna acção na luta contra o destino e o impessoal toma nome.

E é da memória que vamos falar. A memória dos contrabandistas e dos mineiros, das chocalhadas e das bruxas, dos ditos e dos poemas, das ruas que têm “memórias” e das histórias de vida dos que não constam na vida da História.

Recolher a memória, através das suas representações e dos seus objectos, é simultaneamente um posicionamento político e uma forma de luta: é “dar voz” aos silenciados, àqueles que, por não pertencerem a grupos dominantes, não tiveram a possibilidade de se fazerem ouvir; é elevar à dimensão sociológica o quotidiano, a forma subjectiva de sentir a vida e a recordar; é enaltecer, pelo registo, a cultura, os valores, os afectos e a ideologia desta comunidade, por forma a interpretar, entender e valorizar a sua memória individual e social; é acautelar os referenciais sociais e as singularidades (o lugar, a cultura, a história) enquanto requisitos para a construção da identidade.

Este trabalho de recolha permite registar o conhecimento da organização social desta povoação através da narrativa dos indivíduos, marcada pelo processo construtivo e relacional do Eu e do Mundo, do sujeito e do contexto, revelando-se o conjunto de direitos, de vinculações e de bens que pertenceram aos indivíduos e grupos e que conferem as noções de estabilidade, de coesão e de subsistência, em suma, o seu património.

Conservar a memória de Montes Altos é contrariar o efémero, é conservar representações e objectos que condensam a memória do passado e que, apropriados individual e colectivamente e partilhados simbolicamente por todos como algo de valor social e memorial, permitem um sentido de coesão e de identificação entre os membros.

Preservar e valorizar a memória desta comunidade é a forma eficaz de identificação do indivíduo no seu lugar, na sua cultura, na sua história, conferindo uma interpretação e um entendimento à sua experiência. Os benefícios decorrentes desta função são sem dúvida o reforço das características próprias desta cultura, a enfatização dos seus traços distintivos, singulares e diferenciadores, o reforço da auto-estima pessoal e social, a referência da história e da continuidade social. Estas são sem dúvida algumas das características que reforçam a identidade e contribuem para a construção social sustentada.

E é nestas funções de mediação, de conciliação e de reforço da identidade que a recolha e preservação da memória das gentes de Montes Altos se legitima.

Não amamos o que não compreendemos; não compreendemos o que não nos foi revelado.